A Ecovia do Rabaçal, no concelho de Valpaços, criou um novo conceito de turismo de natureza no interior profundo do Norte de Portugal. Passo a passo.
Texto: Paulo Rolão
Fotografias: Pedro Rego
Longe de tudo e de todos, a pequena povoação do Calvo foi perecendo aos poucos. Muitos saíram, nenhum voltou. O último resistente, o único habitante da aldeia, fechou os olhos definitivamente na década de 1960.
Percebe-se: aqui já houve vida, mas agora não há – pelo menos na forma humana. O lagar, de grandes dimensões, é um testemunho vivo de que aqui já se trabalhou. Em tempos, produziu-se azeite. Nasceu-se, viveu-se. Morreu-se. Lá mais ao fundo, onde o riacho corre com intensidade, estão os escombros das velhas casas. Hoje, a aldeia do Calvo é um lugar fantasma, votado ao abandono. Está lá, mas só guarda memórias, o que o torna um sítio fascinante para os recém-chegados, de mochila às costas, desejosos de compreender in loco uma lição sobre a desertificação do interior e sobre a dureza da domesticação da paisagem na serra transmontana.
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E, no entanto, sem a sombra do ser humano, quer a aldeia quer a área envolvente fervilham de vida: as espécies animais e vegetais colonizam vagarosamente o lugar. Ninguém diria que, volvidos tantos anos após o seu abandono, a aldeia do Calvo voltaria a ter pessoas. Não são habitantes formais, nem estão propriamente de regresso. São, sim, visitantes que chegam a pé ou de bicicleta. Não espanta que este lugar de fim de mundo seja agora procurado pelos exploradores do século XXI. E este tornar-se-á um lugar emblemático da Ecovia do Rabaçal.
O projecto para atrair turismo de natureza ao concelho de Valpaços começou a ser delineado em 2014 – até então, a cidade usufruía das vagas regulares de turismo associadas à Feira do Folar, à Feira Franca e à Feira Nacional do Azeite e, claro, ao amplo movimento de turismo da saudade. O projecto arrancou no fim de 2015, estruturando uma estratégia para o território que o diferenciasse da região envolvente. Se é a geologia que condiciona a actividade humana nas imediações do rio Rabaçal e se a montanha e o planalto forçam o ser humano a encontrar vias criativas para extrair sustento da terra, essa teria de ser a narrativa do projecto ambiental – não voltar as costas ao rio e à serra. Pelo contrário. Mergulhar a fundo neles.
O município de Valpaços juntou uma equipa de especialistas e meteu mãos à obra. Durante três anos, foi feita prospecção de velhos caminhos que poderiam ser transformados em trilhos e de zonas escondidas da região que, devidamente requalificadas, atrairiam viajantes. O resultado está agora à vista. “O projecto começou quando estávamos a aferir as disponibilidades turísticas da região e apercebemo-nos de que tínhamos o enquadramento perfeito para uma Ecovia”, esclarece Amílcar Castro Almeida, presidente da Câmara Municipal de Valpaços. O vereador Jorge Mata Pires acrescenta: “Primeiro, procurámos parcerias, encontrando um parceiro científico no Instituto Politécnico de Bragança. Com a Media 360º, desenvolvemos uma linguagem coerente nos painéis, trilhos e centros interpretativos. A sinalética e marcação de percursos foram desenvolvidas pela FLOEMA, uma empresa com vasta experiência nesta área.”
O rio Rabaçal, que nasce na Galiza, é um rio selvagem que corre encaixado num vale, caracterizado a montante pela praia fluvial anexa ao parque de campismo e, a jusante, pelos maciços de granito. Depois de estudar há largos anos na Grã-Bretanha e de conhecer in loco um dos marcos mais significativos do património cultural europeu, Jorge Mata Pires não resiste a comparar: “Posso dizer que a Lage das Medas é o ‘Stonehenge’ português!” Talvez com piores relações públicas até ao momento, mas igualmente apaixonante e com uma velha história de relação do ser humano com a paisagem.
Perto da aldeia abandonada de Cachão, o rio ganha força. Neste nicho territorial em tempos ocupado por comunidades humanas, a fauna iniciou uma nova colonização sem contemplações. Avistam-se com frequência nestas águas guarda-rios, melros-de-água e lontras.
Os três percursos que constituem a Ecovia são lineares e têm em comum o ponto de partida na praia fluvial do parque de campismo. Distribuem-se pela chamada Terra Quente, onde predomina um dos grandes produtos que dá fama à região, o azeite. Avançam pela chamada Terra de Transição, onde predominam o olival e a vinha. E penetram na Terra Fria, marcada pela maior mancha de castanheiros de variedade judia da Europa. “Procurámos criar algo que englobasse a biodiversidade num enquadramento paisagístico e que fosse apelativo para as pessoas – incluindo as comunidades da região”, explica Amílcar Castro Almeida. Para que os percursos não desencorajem os potenciais interessados, estão em curso diversas estruturas de apoio, que facilitem as caminhadas e agilizem as pausas.
Não há percursos de extrema dificuldade, nem ninguém ficará para trás. Às já existentes casas de turismo rural, restauração, locais de provas de vinho ao longo da Ecovia, junta-se um Centro de Observação de Aves Aquáticas. “É um trabalho de sapa da autarquia de Valpaços”, diz Jorge Mata Pires. “Também é uma forma de criar postos de trabalho e de fixar população na região.”
A ecovia não perde de vista o Rabaçal e afluentes. É como se o rio estivesse sempre presente, lembrando que a água é a principal força moldadora do espírito e do solo. Alguns trechos apaixonantes ainda são quase inacessíveis e ficaram de fora dos percursos já marcados, mas existe a intenção de se construírem três quilómetros de passadiços que permitam aos visitantes aceder a locais acidentados que poucos percorreram nas últimas décadas.
Há também um amplo património histórico que não foi descurado, diz a arqueóloga Fátima Machado: “Existe grande concentração aqui de lagares escavados na rocha, apesar de muitos ainda não estarem classificados. Distribuem-se maioritariamente pela Terra Quente” e testemunham a antiguidade da cultura vinícola na região. São dois mil anos de solos remexidos e cuidadosamente tratados até proporcionarem o apreciado néctar. Encontram-se no concelho outros vestígios relevantes: algumas antas e dólmenes dão conta do megalitismo na região. Sepulturas na rocha, vias e pontes, vestígios de conheiras e antigas explorações agrícolas da época romana contam uma história quase tão antiga como as próprias rochas.
A geógrafa Noémia Martins, que também integra a equipa científica da Ecovia do Rabaçal, define um território marcado essencialmente por xistos e granitos: “Estamos perante um relevo de origem tectónica, com destaque para a serra da Padrela com 1.148m de altitude, e um fosso tectónico onde se encaixa o rio Rabaçal e os seus afluentes”, explica. “Nos percursos da Ecovia, encontram-se bem visíveis as áreas de xisto e as de granito, com a correspondente vegetação.” Na Casa do Vinho de Valpaços, olhamos um mapa estendido sobre uma mesa. Nele, estão marcados, a cores diferentes, os três percursos da Ecovia: Rio Calvo, Rabaçal Norte e Rabaçal Sul. É altura, portanto, de irmos finalmente para o terreno.
A praia fluvial do rabaçal é contígua ao parque de campismo. Nas imediações, o rio alarga por força de uma pequena represa e as águas são bordejadas por árvores e vegetação numa margem e por um declive de areia na outra. O granito mostra-se entre o verde da paisagem e o verde que o rio adquire quando batido pelo sol. Em dias de Verão, a praia parece ter um íman, atraindo com o seu magnetismo todos os visitantes.
Paulo Cortez, docente do Instituto Politécnico de Bragança e especialista em fauna, lembra que não existem espécies endémicas exclusivas deste rio, mas os valores de conservação são significativos pela grande diversidade de espécies faunísticas. Muitas aves de rapina patrulham os céus. Aves limícolas mostram-se indiferentes aos turistas e capturam alimento no rio. “O rio gera mobilidade”, diz. “Patrulhando para cima e para baixo em função do volume do caudal, muitas espécies procuram alimento. Os habitats são diversificados. Habitats mais rochosos, mais abertos, mais arborizados ou com mais cascalho definem que espécie melhor se adapta a cada nicho.”
O percurso pedestre mais extenso, de quase vinte quilómetros, é o do rio Calvo, onde se encontra a aldeia homónima e o seu ribeiro refrescante. É aqui, segundo Paulo Cortez, que se podem avistar melros-de-água, indicadores naturais da qualidade da água ribeirinha, e também melros-azuis, mais raros nestas paragens, mas que surgem nos afloramentos graníticos das margens. Neste percurso, privilegiam-se recursos culturais, encontram-se os moinhos abandonados, muitos lagares escavados na rocha e aldeias perdidas entre vales e montes. Mas aguarde em silêncio entre a vegetação e verá igualmente bútios-vespeiros à cata de larvas em colónias de vespas e abelhas silvestres, chapins-azuis e muitas outras espécies de aves em actividade febril.
Em contrapartida, o percurso pelo Rabaçal Norte, com cerca de treze quilómetros, tem outro ponto forte. O Rabaçal espartilha-se num vale profundo. Num miradouro apetrechado com um monóculo, captam-se pormenores que passam despercebidos a olho nu.
Um pouco mais adiante, está um dos ex-líbris da Ecovia: a Via Ferrata. É um troço onde a pulsação cardíaca acelera. A Via permite aos mais aventureiros treparem a vertente sobranceira ao rio, em condições de segurança mas desafiando as vertigens. Perícia, equilíbrio, força de membros e doses elevadas de adrenalina estão garantidos e poucos saem do Rabaçal sem passar pela experiência.
Silencioso, o viajante tira por momentos os olhos do solo e das cordas e concentra-os nos céus. Trás-os-Montes comporta uma parte importante da população nacional de águias-de-bonelli e este vale também é propício para aves rupícolas nocturnas, além de morcegos, melros-azuis, picanços e algumas espécies de andorinhas.
A garça-real está presente ao longo de quase todo o trajecto, com particular incidência na zona a jusante do rio, em Miradeses. É uma das espécies mais espantosas do ecossistema.
O terceiro percurso no Rabaçal Sul é, seguramente, o mais requisitado para os observadores de fauna e, simultaneamente, de contacto com a agricultura – pastos, vinhas, olivais e amendoais e toda a agricultura de base preenchem praticamente todas as parcelas disponíveis de terreno. Neste trajecto, o ponto alto é a praia fluvial de Rio Torto, onde o Torto encontra o Rabaçal. Aqui, segundo Paulo Cortez, avistam-se cotovias, garças-cinzentas, abelharucos, águias-cobreiras, guarda-rios, melros-de-água e rouxinóis.
Além das mais diversas espécies de aves, é bastante provável encontrar lontras a deslizarem pela água e a esconderem-se de intrusos. Paulo Cortez explica que “o vison, espécie exótica e voraz que também se avista nesta zona, pode competir com a lontra”. Aos poucos, os dois pequenos carnívoros colonizaram o território e impuseram-se na paisagem.
As visitas à Ecovia de Valpaços requerem a consulta da sinalética e a recolha de informação no centro de interpretação da praia fluvial do parque de campismo. O resto faz-se a pé. Enchendo o peito de ar e conhecendo o território embalado pelas águas do rio Rabaçal.
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