13 de fevereiro de 2015

Sem nenhum respeito por cabelos brancos

Sem nenhum respeito por cabelos brancos Membros da ‘máfia das pensões’ diziam ser da segurança social para roubar e burlar idosos Por Leonardo Ralha Fiz isto porque os ladrões ameaçaram-me. Saudades e não chorem por mim", escreveu M., a mulher de 79 anos encontrada morta, a 2 de março de 2013, em casa, numa aldeia do concelho de Oliveira do Bairro. A carta deixada aos familiares reforçou a certeza de que cometera suicídio, dois dias depois de se tornar a mais recente vítima daquilo a que chamaram a ‘Máfia das Pensões’. Levaram-lhe os 700 euros que tinha guardados numa lata de biscoitos, muito menos do que perderam outros idosos, mas muito mais do que conseguiu suportar. Detidos a 4 de junho de 2013, numa operação coordenada pela Polícia Judiciária de Aveiro, com a colaboração da Polícia Judiciária de Setúbal, distrito onde viviam nove dos dez arguidos que começaram a ser julgados na semana passada, respondem por várias dezenas de crimes, incluindo associação criminosa, burla qualificada (consumada e tentada), roubo agravado (consumado e tentado), detenção de arma proibida, branqueamento, recetação – no caso de dois ourives, um do Barreiro e outro de Gondomar, acusados de comprar o ouro retirado às vítimas – e também homicídio na forma tentada. O mais grave desses crimes, pelo qual respondem dois dos arguidos, teve um alvo diferente da vítima típica de um grupo acusado de ludibriar ou agredir idosos para que estes lhes dessem todas as poupanças e o ouro que tinham em sua posse. A 14 de janeiro de 2013, estando os arguidos M.B.P. e C.R.P. prestes a ficar com os 600 euros que M., então com 77 anos, guardava em casa, surgiu o filho da idosa, já falecida, ao volante do seu automóvel. Os dois homens fugiram de imediato pela Estrada Nacional 213, mas o perseguidor conseguiu ultrapassá--los, pelo que M. B. P. terá feito vários disparos na sua direção, com a pistola Browning 6,35 mm que mais tarde lhe seria apreendida. Bastou para que encostasse à berma. Como isto se passou no concelho de Valpaços, o julgamento dos dez arguidos está a decorrer no Tribunal de Vila Real. Nas próximas sessões, irão testemunhar algumas das vítimas da ‘Máfia das Pensões’, assim denominada porque os seus elementos se apresentavam como funcionários da Segurança Social, prometendo aumentos nas reformas e remédios gratuitos para conquistar a confiança dos interlocutores, escolhidos pelas limitações físicas e escassez de vizinhos que lhes acudissem. Seguia-se a tentativa de burla, que envolvia uma suposta campanha de troca de notas de euro prestes a sair de circulação e um plano do Governo para numerar as peças de ouro, pelo que seria preciso examinar os ‘carimbos’ de cada uma das joias. Tudo em família Segundo a investigação conduzida pela Polícia Judiciária de Aveiro, no início de 2008 oito homens, quase todos ligados por laços familiares, puseram em prática o plano delineado por M.B.P., que tem agora 59 anos. A seu lado, estariam os seus dois filhos, N.S.S., de 40 anos, e J.S.P., de 36 anos, bem como um irmão mais novo do alegado líder do grupo, A.P.P., de 42 anos, e os companheiros das suas filhas: M.J.P.P., de 37 anos, e A.P.E., de 28 anos. Caberia a M.B.P. e a outro membro do grupo, C.R.P., de 46 anos, a escolha das vítimas, de idade avançada e residentes em zonas rurais, das quais eram recolhidas informações básicas – como o nome completo, número de filhos e a condição de pensionista –, formando-se quatro ‘subgrupos’ que se deslocavam às aldeias. O plano envolveria grandes cautelas para que nunca fossem identificados. Todos eles se deslocavam nos seus automóveis para as cidades em que ficavam alojados em hotéis, mas as ‘visitas’ às aldeias dos idosos eram realizadas em carros de baixa cilindrada (como Opel Corsa, Ford Focus e Citroën Saxo), comprados em dinheiro vivo a pessoas que colocavam anúncios na internet ou tinham viaturas à venda na via pública. As comunicações com os donos desses carros eram feitas com recurso a telemóveis com cartões pré-pagos, e usavam sempre nomes falsos. Terminada a sua função, os automóveis eram abandonados. Golpes de milhares O primeiro crime de roubo agravado pelo qual os arguidos vão responder ocorreu a 13 de fevereiro de 2012, numa aldeia do concelho de Santa Maria da Feira – um daqueles, a par de Leiria, onde há registo de mais roubos e burlas a idosos –, estabelecendo um ‘modus operandi’ que se repetiu pelo menos 44 vezes. N.S.S. ter-se-á apresentado como "funcionário da Segurança Social" e dito que R.S.V. era médico. Mostraram a M., idosa então com 79 anos, notas de euro, garantindo-lhe que seria preciso trocá-las. Quando ela foi ao quarto, colocando 15 mil euros em cima da cama, só tiveram de agarrar nas notas e fugir. Segundo a investigação da Polícia Judiciária, o crime seguinte ocorreu a 7 de maio de 2012, numa aldeia do concelho de Penalva do Castelo. A., de 81 anos, garantiu que não tinha dinheiro em casa, mas a idosa conta que N.S.S. reparou no cordão de ouro que tinha ao pescoço e nas alianças nos dedos, dizendo-lhe que precisaria de "tirar o carimbo" dessas peças. Na posse de mais sete pulseiras e um anel de ouro, o membro da ‘Máfia das Pensões’ terá então pedido que fosse buscar um documento de identificação, aproveitando para fugir com objetos avaliados em 15 mil euros. Ainda mais rentáveis foram outros crimes imputados pelo Ministério Público aos arguidos. Numa zona rural de Cantanhede, D., então com 79 anos, foi convencida por J.S.P., M.J.P.P. e A.P.E., no dia 26 de março de 2013, de que devia dinheiro à Segurança Social. A idosa dirigiu--se ao sótão, onde tinha cerca de 30 mil euros em notas e mais de 10 mil euros em ouro. Tal como alguns crimes que estão a ser julgados em Vila Real nem sequer foram consumados – por desconfiança de ‘alvos’, como E., de 86 anos, moradora numa aldeia de Leiria, que recusou abrir a porta ao ‘funcionário da Segurança Social’ –, também os métodos de apropriação dos bens das vítimas variaram no que toca ao grau de violência. L., de 57 anos, residente numa zona rural de Cantanhede, queixou-se de ter sido agredido a murro e pontapé por J.S.P., depois de lhe ter entregado um envelope com 350 euros, a 16 de maio de 2013. Quase um ano antes, numa localidade do concelho de Vagos, M., de 87 anos, teve uma pistola apontada à cabeça enquanto lhe revistavam a casa, encontrando dois mil euros na cozinha. Contas milionárias Na sequência da investigação, foram identificadas e congeladas contas bancárias abertas não só pelos arguidos como também por membros da ‘família alargada’, incluindo as suas companheiras, as companheiras dos filhos e filhos menores. Ao todo, entre o início de 2008, quando as autoridades acreditam ter começado a associação criminosa, e a detenção, em 2013, foram realizados depósitos, quase sempre em numerário, num valor total de 2,259 milhões de euros. Estão acusados do crime de branqueamento, pois o Ministério Público defende que nenhum dos titulares das dezenas de contas teve rendimentos de qualquer atividade profissional lícita, sendo a constante entrada de dinheiro decorrente dos furtos e burlas praticados a idosos de várias regiões de Portugal. Pretende-se ainda que revertam para o Estado todas as quantias depositadas, o valor dos veículos dos arguidos, os imóveis que compraram e as peças de ouro recuperadas. Talvez se encontre o cordão de ouro que na manhã de 8 de fevereiro de 2013 estava no pescoço de A., uma idosa de 89 anos, invisual e com problemas de audição, que abraçou um dos arguidos que entrou no seu quintal, numa aldeia do concelho de Penafiel, julgando tratar-se de um neto que a tinha ido visitar.

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